11/12/12
Não conta
Miguel Branco
10/11/12
Folgas
14/09/12
Ainda ontem
02/09/12
Dia sozinho
03/05/12
Miguel Branco
12/04/12
Incondicionalmente
Escrever sabe a pouco. Alguém nos vê a descarregar cada resto de nós em cada tecla? Alguém sabe o que somos, em palavras plácidas ou efervescentes, em rugídos inúteis e desgastantes, em vírgulas incorrectas ou em pontos finais que parecem não resolver a frase? Não.
Eis o que somos para o papel, para os amigos que nos lêem, para o mundo que esperamos conquistar através de alguns trechos de nós, de algumas células menos moribundas, de lágrimas duvidosas. Nunca seremos o que escrevemos. Talvez sejamos o que gostávamos de ser.
Não te escrevo uma carta. Acalmo-te, seguro-te a tristeza com um pano roto e velho, e esqueço-me de mim. Não li num jornal, não ví nas notícias, ouvi-te dizer por palavras injustas, descuidadas. Sabiam a fusilli com atum de há cinco dias atrás. Vácuo. Nunca soube fingir, torno-me um nóctivago pseudo feliz em volta dos meus. Mas amanhã o tempo não muda. Vai nascer encoberto, ganha luz após o almoço e entristece com o chegar do vento. Não me leves tudo porque ainda precisas de mim. Não me acaricies com a satisfação implícita da tua vitória moral e incoerente. Eu não gostei, não falei, só escrevi. Fui insultar o Tejo por estar tão sujo e não se limpar. Fui descobrir o preço da vista para Lisboa só para não ter de voltar. Mas amanhã é outro dia e eu farei o mesmo por ti, ainda que me esqueça de mim.
Miguel Branco
22/03/12
Espelho Partido
Não me lembro porquê. Não me lembro de esperar por mim, nem de me repetir constantemente, nem de pedir um café e deixá-lo arrefecer. Não me recordo de querer ser mais e ver os dias a passar discretamente. Mal sei o que me contou o meu espelho. Talvez precise de não me lembrar. Talvez não queira. Talvez não consiga. Talvez me lembre quando não me restar mais nada.
Miguel Branco
29/02/12
As maçãs e os comboios a passar
Gostava de ter uma casa em que se ouvissem os comboios a passar. Em que imaginasse o frenesim absurdo das pessoas, os choques nas escadas, a aglutinação na entrada das carruagens. E eu a saborear a manhã, a acordar com o seu fresquinho, mais um café e um cigarro. Como se daquela casa eu visse tudo. Um planisfério interior da vida de outrém imaginada por mim, em breves recortes sonoros, em avisos com vozes cansativas onde se pede a compreensão dos passageiros. Mas o comboio terá um atrasado de cerca de 17 minutos, que mais parecem três horas.
As mais diversas linhas, as mais complexas ligações, ferrovias que me confudem o destino. Visto-me, oiço a rádio, perco-me nos livros do móvel antigo, leio os episódios nóctivagos que a calçada guardou para me confessar e nem sequer reparo.
Depois preciso de me sentar, de apreciar os ponteiros a girar lentamente, preciso da tua cabeça no meu peito, do teu amor em silêncio ao desviar das persianas. Da tua birra de sono, do teu jeito de refilar sem parar de rir, da tua mania de não me deixares sair da cama e da tua irritação quando te pergunto se queres uma maçã. É impossível uma maçã dar-te ainda mais fome. Mas por mim não há problema, tomamos o pequeno-almoço na esplanada.
Miguel Branco
12/02/12
Novo dia
Fazes declarações sombrias daquilo que sou. Vês sem olhar, preferes não sentir o vento a dar-te alguma luz à retina. Cospes palavras e cospes-me para um beco sujo, tornas-me vizinho dos ratos. As escadas de incêndio cheias de ferrugem, o odor ao desgaste, à ruína inscrita em pacotes de cartão húmido com pedaços bolorentos de um chilli barato e picante. Um sapato solto, sem sola, que não esconde as feridas dos pés e não protege do frio. Viraste costas, não ouves o meu desespero em conversa com a velha do 7º andar, que finge não me ver e me chama desgraçado pelo seu olhar. Como o prato do dia do italiano da esquina passado uma semana. Estás cega e surda, só ouves os teus próprios gritos inesgotáveis, em mentiras conscientes. Declamo poesia de rua, da minha autoria. Ninguém escuta, convidam-me a subir ao terraço e sinto-me a cair. A morte não é solução, apesar de ser uma tentação. Que noite terrível, tenebrosa, tudo parecia tão real.
Bom dia amor, dormiste bem?
Miguel Branco
14/01/12
Eu não digo
Sempre falámos a mesma língua. Sempre te riste quando ninguém achou piada. Não por compaixão, mas porque achaste graça. Sempre disseste que sou igual à minha mãe. E eu a negar. Sempre quiseste pensar que não ia durar. Para te defenderes. Sempre te auto-proclamaste o homem da relação. Sempre te escondeste para chorar. Sempre me levaste à estação. Sempre propuseste que fizéssemos uma paragem no caminho. Sempre me apontaste o dedo. Sempre pensaste, sem sequer a ti própria o admitires, que eu podia ser melhor. Sempre gostaste de ir aos sítios onde nunca tinhas ido. Sempre adoraste o meu gato. Mesmo chamando-lhe nomes. Sempre deixaste os teus óculos escuros na minha mesa-de-cabeceira. E o líquidos das lentes. E, as vezes, os ganchos para o cabelo. Sempre foste deixando parte de ti comigo. Sempre fizeste questão. Sempre recusaste dizer sempre. Sempre disfarçaste. Não se passa nada. Sempre arrotaste depois das minhas divagações culinárias. E sempre quiseste repetir. Sempre odiaste que te desse a mão para atravessares a estrada. Sempre me acusaste de ouvir barulho. Em vez de ouvir música. Sempre adoraste os meus ombros. Sempre disseste que a culpa era minha. Sempre odiaste quando falo à moda da margem sul. Sempre me provocaste a escolher a roupa do teu armário. Sempre quiseste o meu colo. Sempre fomos nós. E nunca te importaste. Sempre consumimos as paisagens como se fossem exclusivas. Sempre recusámos fazer planos a longo prazo. Sempre gozámos com as noites em que éramos para dormir juntos, e não sucedeu porque combinámos previamente. Sempre utilizaste palavras demasiado fortes quando discutimos. Sempre fingiste que te enganavas quando surgia a pergunta: “há quanto tempo namoram?”. Sempre esperaste não me amar tanto. Mas não conseguiste. Deixa-me dizer sempre, mesmo que hoje não queiras ouvir. Eu juro que não digo: para sempre.
Miguel Branco
02/01/12
O espanhol de Pamplona
Não sou só eu. E eu sempre pensei que sim. Pediu licença e sentou-se desajeitadamente, enquanto eu devorava a minha sobremesa literária depois do almoço. De súbito, vejo-o a gesticular e a expelir um castelhano acessível em direcção a ninguém, que por breves instantes imaginei que fosse para mim. Não era.
A barba cerrada e densa, o cabelo extenso e gasto e um olhar profundo e esverdeado, como o quintal da nossa infância. Enfim falou para mim. Com a simpatia e simplicidade que já tinha demonstrado, o espanhol pediu-me para enrolar um cigarro. Perguntei-lhe se sabia enrolar e a resposta foi afirmativa, até porque os espanhóis têm esse hábito, referiu-me ele no nosso curto diálogo. Não sei ao certo se fui eu, se me resguardei demais dentro do meu livro, se ouvia as suas conversas ou se lia o meu livro e o traduzia automaticamente para castelhano dentro da cabeça. Não sei, mas tenho a minha convicção: ele é que não tinha tempo para falar comigo.
E foi aí que percebi que não sou o único. Há alguém no mundo, que com os seus 30/40 anos ainda tem um amigo imaginário. Eu tenho amigos (não imaginários) que me gozam quando eu admito a existência do meu amigo, e posso em certas circunstâncias aproveitar para entrar em certas brincadeiras, mas este assunto não tem uma piada especial. O meu amigo imaginário não tem de ser perfeito, não tem de ter um nome pacóvio, não tem sequer de ter uma forma. O meu amigo imaginário é uma cadeira vazia, é uma letra maiúscula num outdoor, é uma nuvem matrafona a vender peixe no mercado. Ele aparece quando precisamos de discutir política, de chamar nomes às mulheres e de questionar o futuro de uma nação enterrada há 35 anos.
Não espreitei inúmeras vezes a conversa do espanhol com o seu amigo, ouvi umas interrogações sobre a sociedade e o estado social, umas filosofias à borla que sabem tão bem quando estamos cheios. Soube que era de Pamplona, mas não quis alongar-me que ainda íamos parar às touradas. De Pamplona...o espanhol. O amigo é de onde tem que estar. Como o meu.
Os amigos imaginários não morrem aos 8 anos, crescem como nós e crescem connosco. Perdem o nome e tornam-se (quase) a consciência.
Miguel Branco