11/12/12

Não conta

Há quanto tempo. Não espreitava para dentro de mim. Mas estou normal: tipicamente desnorteado. Sem previsões para a ementa do lanche, nem se sexta dou um salto ao cais. As divergências como cartaz de não orgulho, de rejeição. Achava que quem não trazia complicações dormia em encosto de acalmia. Mas conta mais o que não é visto, aquilo que não se quis ler, porque amanhã bem cedo há que ir trabalhar. O desvio de olhares, fixados nos pecados, já que o futuro está por aí e carrega uma tempestade de vivências. É a irresponsabilidade e arrogância juvenil, que derruba qualquer resistente e castiga quem se julga livre. Há quanto tempo não te via querida incompreensão. Ou é da minha vista ou estás mais gorda.



Miguel Branco

10/11/12

Folgas

Parece que tenho medo. Viste? Ainda agora tremi outra vez. Assombram-me as palavras que se amontoam no meu sotão, teses de literatura breve e demasiado supérfula. Tenho medo de voltar a não conseguir terminar este. De me dizer que já não sei. O tim-ba-la-lão das músicas deprimidas que têm a mania que mandam em mim, pobres coitadas. Mas também não sou eu. É antes o dia da tua folga. A tua insistente ideia de me tapares com três mantas, quando sabes que sofro de calor, mesmo nos dias de cacimba. É o meu acordar-te que tanto te irrita, mas que te sabe invariavelmente bem. São os jantares grátis em lugares que não nos pertencem. É a tua estranha ingenuidade, que só comigo não tens. Assim como o teu feitio respondão, sempre pronto a disparar verdades desagradáveis à cara dos mais próximos. Mais que isso, é a forma como falas de nós um ano e meio depois. Com a certeza de que o futuro já não é um tema tabu. Mas também não é preciso idealizar uma casa a nosso gosto e o quarto para os nossos filhos. Lá nisso amor, estamos de acordo.

Miguel Branco

14/09/12

Ainda ontem


Já não me lembrava como era. Como as vestes enganavam o vento e assentavam nos olhos dos pobres coitados. Ainda ontem era eu. Que me enclausurava em camisas velhas do meu pai só para não mostrar quem sou, como se isso fosse possível. De patilhas atrevidas, bigode mal formado, sempre a recolher restos de cerveja, invejoso. O olhar era curto, fugaz, preso ao solo, arrastado em respeito. Nunca outrora o levantar-cedo-e-cego-erguer tinha tido tanto nexo, tanta lógica invertida tropeçando o grito que jamais esqueci. Sim, porque isso de complicar contas e inventar tabuadas com letras romanas como se fosse o bê-á-bá da bicharada não está ao alcance de um engravatado no metro. Antes pelo contrário, mais se aplica a um selvagem com um remendo do Rik & Rok a cobrir o joelho, sem emprego e com o futuro por um canudo. Ainda ontem éramos nós. A proferir palavras de complexa pronúncia, sem saber bem o seu significado, um latim que se amarrou ao coração, sem aviso prévio, com as unhas espetadas a um f tremendo. Ainda ontem deixei de ser. Ainda ontem me quis enganar e pensar que me ia sentar a fumar enquanto vos via crescer. Ainda ontem desci as mesmas escadas de sempre com os olhos húmidos e um sorriso de orgulho. Ainda ontem disse que não ia. Ainda hoje voltei e quem pagou foram vocês, aqueles que um dia ousei indicar um caminho duro, mas intenso. Ainda hoje me lembrei como era. Devo-vos tanto como vocês a mim. Somos assim.

Miguel Branco

02/09/12

Dia sozinho


Comecei pelo fim e adormeci. Deitei-me, mandei a mensagem e fui tomar banho sem ouvir a porta do quintal mais o vento. Saí de casa e acordei, os lençois estavam frios e o despertador já me irrita. Fiz tudo ao contrário. Estive no início do século XX e ninguém acredita...como é só meu. Fui trabalhar sem que nenhuma sombra sentisse o aroma da minha ausência, reparaste? Tudo a achar que me sentei e falei, se alguma vez soubessem de que madeira sou feito. Estive sozinho o dia inteiro, cheio de ninguém, farto de mim e vazio de vocês. Viro a cara à luta e continuo normal. Lunático que sou, longe de mim. E acabo aqui, de volta ao que fui, que há meses larguei. Ostracizo-me diante de ti, vizinha e casa em tempos de outrém. Um dia sozinho, como me soube tão bem.

Miguel Branco

03/05/12


Desculpa

Um reverso meio torto. Agora. Parece que desaprendi, abandonei-te.
Breves vazias e desgastantes, como o regresso de uma epopeia interminável, um acordar de noite em solidão dispersa.
Informação dispensável, a vírgula no sítio certo, a interrogação escondida, a exclamação sem vontade, o ponto final. Pontuação da minha vida, tão cruel, demasiadamente real para aquilo que um dia quis deixar. De mim. Desculpa-me meu ouvinte… São dias eternos de escuta e de um receio quebradiço, quase não consigo ter tempo para me ver, narciso que sou. Logo neste momento em que estou mais perto de me tornar homem, de barba por fazer, à descrição do meu saber, ao saber da urgente aprendizagem. Nasci cego, ao contrário de ti. Nasceste mudo, mas dizes-me tanto. Tu que me esperas na minha mesa-de-cabeceira, tu que sabes de onde venho, tu que reconheces a água no meu olhar ao ouvires os meus passos quando piso o granito frio das escadas enquanto largo um suspiro de exaustão. Ignoro-te sem intensão. Também assistes a tudo, sei que compreendes o silêncio moribundo, o nó na garganta, o desejo intensivo de esquecer…e explodir.
Não penses que me esqueço de ti. Conheces como poucos a necessidade que tenho de estar comigo, de desabafar comigo…e contigo. Não me deixes só, mas deixa-me estar…assim. Desculpa.

Miguel Branco

12/04/12

Incondicionalmente

Escrever sabe a pouco. Alguém nos vê a descarregar cada resto de nós em cada tecla? Alguém sabe o que somos, em palavras plácidas ou efervescentes, em rugídos inúteis e desgastantes, em vírgulas incorrectas ou em pontos finais que parecem não resolver a frase? Não.


Eis o que somos para o papel, para os amigos que nos lêem, para o mundo que esperamos conquistar através de alguns trechos de nós, de algumas células menos moribundas, de lágrimas duvidosas. Nunca seremos o que escrevemos. Talvez sejamos o que gostávamos de ser.


Não te escrevo uma carta. Acalmo-te, seguro-te a tristeza com um pano roto e velho, e esqueço-me de mim. Não li num jornal, não ví nas notícias, ouvi-te dizer por palavras injustas, descuidadas. Sabiam a fusilli com atum de há cinco dias atrás. Vácuo. Nunca soube fingir, torno-me um nóctivago pseudo feliz em volta dos meus. Mas amanhã o tempo não muda. Vai nascer encoberto, ganha luz após o almoço e entristece com o chegar do vento. Não me leves tudo porque ainda precisas de mim. Não me acaricies com a satisfação implícita da tua vitória moral e incoerente. Eu não gostei, não falei, só escrevi. Fui insultar o Tejo por estar tão sujo e não se limpar. Fui descobrir o preço da vista para Lisboa só para não ter de voltar. Mas amanhã é outro dia e eu farei o mesmo por ti, ainda que me esqueça de mim.




Miguel Branco

22/03/12

Espelho Partido

Nem sempre me lembro onde estive. Com quem troquei desassossegos escondidos, com quem partilhei o silêncio sem pagar, com quem dancei poesia gasta e banal. Não me recordo da roupa que usei, nem de olhar as horas, nem de ser preguiçoso e idealista, como sempre sou. Encho-me de mim, dos devaneios de miúdo, das expressões dispensáveis, do cheiro a lágrimas nunca confessadas, das conversas necessárias que prefiro não ter para não me ouvir toda a manhã seguinte.



Não me lembro porquê. Não me lembro de esperar por mim, nem de me repetir constantemente, nem de pedir um café e deixá-lo arrefecer. Não me recordo de querer ser mais e ver os dias a passar discretamente. Mal sei o que me contou o meu espelho. Talvez precise de não me lembrar. Talvez não queira. Talvez não consiga. Talvez me lembre quando não me restar mais nada.







Miguel Branco

29/02/12

As maçãs e os comboios a passar

Gostava de ter uma casa em que se ouvissem os comboios a passar. Em que imaginasse o frenesim absurdo das pessoas, os choques nas escadas, a aglutinação na entrada das carruagens. E eu a saborear a manhã, a acordar com o seu fresquinho, mais um café e um cigarro. Como se daquela casa eu visse tudo. Um planisfério interior da vida de outrém imaginada por mim, em breves recortes sonoros, em avisos com vozes cansativas onde se pede a compreensão dos passageiros. Mas o comboio terá um atrasado de cerca de 17 minutos, que mais parecem três horas.


As mais diversas linhas, as mais complexas ligações, ferrovias que me confudem o destino. Visto-me, oiço a rádio, perco-me nos livros do móvel antigo, leio os episódios nóctivagos que a calçada guardou para me confessar e nem sequer reparo.


Depois preciso de me sentar, de apreciar os ponteiros a girar lentamente, preciso da tua cabeça no meu peito, do teu amor em silêncio ao desviar das persianas. Da tua birra de sono, do teu jeito de refilar sem parar de rir, da tua mania de não me deixares sair da cama e da tua irritação quando te pergunto se queres uma maçã. É impossível uma maçã dar-te ainda mais fome. Mas por mim não há problema, tomamos o pequeno-almoço na esplanada.



Miguel Branco

12/02/12

Novo dia

Fazes declarações sombrias daquilo que sou. Vês sem olhar, preferes não sentir o vento a dar-te alguma luz à retina. Cospes palavras e cospes-me para um beco sujo, tornas-me vizinho dos ratos. As escadas de incêndio cheias de ferrugem, o odor ao desgaste, à ruína inscrita em pacotes de cartão húmido com pedaços bolorentos de um chilli barato e picante. Um sapato solto, sem sola, que não esconde as feridas dos pés e não protege do frio. Viraste costas, não ouves o meu desespero em conversa com a velha do 7º andar, que finge não me ver e me chama desgraçado pelo seu olhar. Como o prato do dia do italiano da esquina passado uma semana. Estás cega e surda, só ouves os teus próprios gritos inesgotáveis, em mentiras conscientes. Declamo poesia de rua, da minha autoria. Ninguém escuta, convidam-me a subir ao terraço e sinto-me a cair. A morte não é solução, apesar de ser uma tentação. Que noite terrível, tenebrosa, tudo parecia tão real.


Bom dia amor, dormiste bem?




Miguel Branco

14/01/12

Eu não digo

Sempre falámos a mesma língua. Sempre te riste quando ninguém achou piada. Não por compaixão, mas porque achaste graça. Sempre disseste que sou igual à minha mãe. E eu a negar. Sempre quiseste pensar que não ia durar. Para te defenderes. Sempre te auto-proclamaste o homem da relação. Sempre te escondeste para chorar. Sempre me levaste à estação. Sempre propuseste que fizéssemos uma paragem no caminho. Sempre me apontaste o dedo. Sempre pensaste, sem sequer a ti própria o admitires, que eu podia ser melhor. Sempre gostaste de ir aos sítios onde nunca tinhas ido. Sempre adoraste o meu gato. Mesmo chamando-lhe nomes. Sempre deixaste os teus óculos escuros na minha mesa-de-cabeceira. E o líquidos das lentes. E, as vezes, os ganchos para o cabelo. Sempre foste deixando parte de ti comigo. Sempre fizeste questão. Sempre recusaste dizer sempre. Sempre disfarçaste. Não se passa nada. Sempre arrotaste depois das minhas divagações culinárias. E sempre quiseste repetir. Sempre odiaste que te desse a mão para atravessares a estrada. Sempre me acusaste de ouvir barulho. Em vez de ouvir música. Sempre adoraste os meus ombros. Sempre disseste que a culpa era minha. Sempre odiaste quando falo à moda da margem sul. Sempre me provocaste a escolher a roupa do teu armário. Sempre quiseste o meu colo. Sempre fomos nós. E nunca te importaste. Sempre consumimos as paisagens como se fossem exclusivas. Sempre recusámos fazer planos a longo prazo. Sempre gozámos com as noites em que éramos para dormir juntos, e não sucedeu porque combinámos previamente. Sempre utilizaste palavras demasiado fortes quando discutimos. Sempre fingiste que te enganavas quando surgia a pergunta: “há quanto tempo namoram?”. Sempre esperaste não me amar tanto. Mas não conseguiste. Deixa-me dizer sempre, mesmo que hoje não queiras ouvir. Eu juro que não digo: para sempre.




Miguel Branco

02/01/12

O espanhol de Pamplona

Não sou só eu. E eu sempre pensei que sim. Pediu licença e sentou-se desajeitadamente, enquanto eu devorava a minha sobremesa literária depois do almoço. De súbito, vejo-o a gesticular e a expelir um castelhano acessível em direcção a ninguém, que por breves instantes imaginei que fosse para mim. Não era.


A barba cerrada e densa, o cabelo extenso e gasto e um olhar profundo e esverdeado, como o quintal da nossa infância. Enfim falou para mim. Com a simpatia e simplicidade que já tinha demonstrado, o espanhol pediu-me para enrolar um cigarro. Perguntei-lhe se sabia enrolar e a resposta foi afirmativa, até porque os espanhóis têm esse hábito, referiu-me ele no nosso curto diálogo. Não sei ao certo se fui eu, se me resguardei demais dentro do meu livro, se ouvia as suas conversas ou se lia o meu livro e o traduzia automaticamente para castelhano dentro da cabeça. Não sei, mas tenho a minha convicção: ele é que não tinha tempo para falar comigo.


E foi aí que percebi que não sou o único. Há alguém no mundo, que com os seus 30/40 anos ainda tem um amigo imaginário. Eu tenho amigos (não imaginários) que me gozam quando eu admito a existência do meu amigo, e posso em certas circunstâncias aproveitar para entrar em certas brincadeiras, mas este assunto não tem uma piada especial. O meu amigo imaginário não tem de ser perfeito, não tem de ter um nome pacóvio, não tem sequer de ter uma forma. O meu amigo imaginário é uma cadeira vazia, é uma letra maiúscula num outdoor, é uma nuvem matrafona a vender peixe no mercado. Ele aparece quando precisamos de discutir política, de chamar nomes às mulheres e de questionar o futuro de uma nação enterrada há 35 anos.


Não espreitei inúmeras vezes a conversa do espanhol com o seu amigo, ouvi umas interrogações sobre a sociedade e o estado social, umas filosofias à borla que sabem tão bem quando estamos cheios. Soube que era de Pamplona, mas não quis alongar-me que ainda íamos parar às touradas. De Pamplona...o espanhol. O amigo é de onde tem que estar. Como o meu.


Os amigos imaginários não morrem aos 8 anos, crescem como nós e crescem connosco. Perdem o nome e tornam-se (quase) a consciência.




Miguel Branco