02/01/12

O espanhol de Pamplona

Não sou só eu. E eu sempre pensei que sim. Pediu licença e sentou-se desajeitadamente, enquanto eu devorava a minha sobremesa literária depois do almoço. De súbito, vejo-o a gesticular e a expelir um castelhano acessível em direcção a ninguém, que por breves instantes imaginei que fosse para mim. Não era.


A barba cerrada e densa, o cabelo extenso e gasto e um olhar profundo e esverdeado, como o quintal da nossa infância. Enfim falou para mim. Com a simpatia e simplicidade que já tinha demonstrado, o espanhol pediu-me para enrolar um cigarro. Perguntei-lhe se sabia enrolar e a resposta foi afirmativa, até porque os espanhóis têm esse hábito, referiu-me ele no nosso curto diálogo. Não sei ao certo se fui eu, se me resguardei demais dentro do meu livro, se ouvia as suas conversas ou se lia o meu livro e o traduzia automaticamente para castelhano dentro da cabeça. Não sei, mas tenho a minha convicção: ele é que não tinha tempo para falar comigo.


E foi aí que percebi que não sou o único. Há alguém no mundo, que com os seus 30/40 anos ainda tem um amigo imaginário. Eu tenho amigos (não imaginários) que me gozam quando eu admito a existência do meu amigo, e posso em certas circunstâncias aproveitar para entrar em certas brincadeiras, mas este assunto não tem uma piada especial. O meu amigo imaginário não tem de ser perfeito, não tem de ter um nome pacóvio, não tem sequer de ter uma forma. O meu amigo imaginário é uma cadeira vazia, é uma letra maiúscula num outdoor, é uma nuvem matrafona a vender peixe no mercado. Ele aparece quando precisamos de discutir política, de chamar nomes às mulheres e de questionar o futuro de uma nação enterrada há 35 anos.


Não espreitei inúmeras vezes a conversa do espanhol com o seu amigo, ouvi umas interrogações sobre a sociedade e o estado social, umas filosofias à borla que sabem tão bem quando estamos cheios. Soube que era de Pamplona, mas não quis alongar-me que ainda íamos parar às touradas. De Pamplona...o espanhol. O amigo é de onde tem que estar. Como o meu.


Os amigos imaginários não morrem aos 8 anos, crescem como nós e crescem connosco. Perdem o nome e tornam-se (quase) a consciência.




Miguel Branco

1 comentário:

  1. Quem te avisa teu amigo é, costuma-se dizer. Bendita consciência! ;)

    Adoro o título deste texto!

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