05/01/13

Descobrimentos

Tinha que ser assim. Ou isso ou vislumbrar as naus a chegar à Índia como se Vasco da Gama não soubesse o que está a fazer. Qual escolherias? Agora certo, certo foi a primeira coisa que fiz ao virar do ano, que esta esquina já cheirava a hortelã em excesso. Há quem ainda esteja por lá, como há quem se afogue em doze passas de ilusão. Os que sobram fingem que lhes é indiferente, quando todos sabemos que mais facíl não há. Mas não estão sozinhos. Quase me esquecia dos que pedem pela champions do glorioso quando já não estamos lá. Ou daqueles que se não beberem champange vão ter um acidente ou perder o emprego. Ainda existem os clássicos que mandam os políticos para as ortigas com panelas e tachos. E os que distribuem mensagens predefinidas só para poderem dizer que o fizeram. Os que rejubilam com o fogo-de-artifício e cinco minutos estão enfiados numa cama (como se os adereços a tornassem a melhor de sempre). Os que resolvem questões pendentes pela nostalgia da época. Aqueles que param de fumar, os que tentam e os que começam a fazer jogging ao som do mar. E ainda os que vão almoçar ao Tavares porque o dinheiro vai acabar. E eu? Eu sou o Vasco da Gama. Até para o ano.

Miguel Branco

11/12/12

Não conta

Há quanto tempo. Não espreitava para dentro de mim. Mas estou normal: tipicamente desnorteado. Sem previsões para a ementa do lanche, nem se sexta dou um salto ao cais. As divergências como cartaz de não orgulho, de rejeição. Achava que quem não trazia complicações dormia em encosto de acalmia. Mas conta mais o que não é visto, aquilo que não se quis ler, porque amanhã bem cedo há que ir trabalhar. O desvio de olhares, fixados nos pecados, já que o futuro está por aí e carrega uma tempestade de vivências. É a irresponsabilidade e arrogância juvenil, que derruba qualquer resistente e castiga quem se julga livre. Há quanto tempo não te via querida incompreensão. Ou é da minha vista ou estás mais gorda.



Miguel Branco

10/11/12

Folgas

Parece que tenho medo. Viste? Ainda agora tremi outra vez. Assombram-me as palavras que se amontoam no meu sotão, teses de literatura breve e demasiado supérfula. Tenho medo de voltar a não conseguir terminar este. De me dizer que já não sei. O tim-ba-la-lão das músicas deprimidas que têm a mania que mandam em mim, pobres coitadas. Mas também não sou eu. É antes o dia da tua folga. A tua insistente ideia de me tapares com três mantas, quando sabes que sofro de calor, mesmo nos dias de cacimba. É o meu acordar-te que tanto te irrita, mas que te sabe invariavelmente bem. São os jantares grátis em lugares que não nos pertencem. É a tua estranha ingenuidade, que só comigo não tens. Assim como o teu feitio respondão, sempre pronto a disparar verdades desagradáveis à cara dos mais próximos. Mais que isso, é a forma como falas de nós um ano e meio depois. Com a certeza de que o futuro já não é um tema tabu. Mas também não é preciso idealizar uma casa a nosso gosto e o quarto para os nossos filhos. Lá nisso amor, estamos de acordo.

Miguel Branco

14/09/12

Ainda ontem


Já não me lembrava como era. Como as vestes enganavam o vento e assentavam nos olhos dos pobres coitados. Ainda ontem era eu. Que me enclausurava em camisas velhas do meu pai só para não mostrar quem sou, como se isso fosse possível. De patilhas atrevidas, bigode mal formado, sempre a recolher restos de cerveja, invejoso. O olhar era curto, fugaz, preso ao solo, arrastado em respeito. Nunca outrora o levantar-cedo-e-cego-erguer tinha tido tanto nexo, tanta lógica invertida tropeçando o grito que jamais esqueci. Sim, porque isso de complicar contas e inventar tabuadas com letras romanas como se fosse o bê-á-bá da bicharada não está ao alcance de um engravatado no metro. Antes pelo contrário, mais se aplica a um selvagem com um remendo do Rik & Rok a cobrir o joelho, sem emprego e com o futuro por um canudo. Ainda ontem éramos nós. A proferir palavras de complexa pronúncia, sem saber bem o seu significado, um latim que se amarrou ao coração, sem aviso prévio, com as unhas espetadas a um f tremendo. Ainda ontem deixei de ser. Ainda ontem me quis enganar e pensar que me ia sentar a fumar enquanto vos via crescer. Ainda ontem desci as mesmas escadas de sempre com os olhos húmidos e um sorriso de orgulho. Ainda ontem disse que não ia. Ainda hoje voltei e quem pagou foram vocês, aqueles que um dia ousei indicar um caminho duro, mas intenso. Ainda hoje me lembrei como era. Devo-vos tanto como vocês a mim. Somos assim.

Miguel Branco

02/09/12

Dia sozinho


Comecei pelo fim e adormeci. Deitei-me, mandei a mensagem e fui tomar banho sem ouvir a porta do quintal mais o vento. Saí de casa e acordei, os lençois estavam frios e o despertador já me irrita. Fiz tudo ao contrário. Estive no início do século XX e ninguém acredita...como é só meu. Fui trabalhar sem que nenhuma sombra sentisse o aroma da minha ausência, reparaste? Tudo a achar que me sentei e falei, se alguma vez soubessem de que madeira sou feito. Estive sozinho o dia inteiro, cheio de ninguém, farto de mim e vazio de vocês. Viro a cara à luta e continuo normal. Lunático que sou, longe de mim. E acabo aqui, de volta ao que fui, que há meses larguei. Ostracizo-me diante de ti, vizinha e casa em tempos de outrém. Um dia sozinho, como me soube tão bem.

Miguel Branco

03/05/12


Desculpa

Um reverso meio torto. Agora. Parece que desaprendi, abandonei-te.
Breves vazias e desgastantes, como o regresso de uma epopeia interminável, um acordar de noite em solidão dispersa.
Informação dispensável, a vírgula no sítio certo, a interrogação escondida, a exclamação sem vontade, o ponto final. Pontuação da minha vida, tão cruel, demasiadamente real para aquilo que um dia quis deixar. De mim. Desculpa-me meu ouvinte… São dias eternos de escuta e de um receio quebradiço, quase não consigo ter tempo para me ver, narciso que sou. Logo neste momento em que estou mais perto de me tornar homem, de barba por fazer, à descrição do meu saber, ao saber da urgente aprendizagem. Nasci cego, ao contrário de ti. Nasceste mudo, mas dizes-me tanto. Tu que me esperas na minha mesa-de-cabeceira, tu que sabes de onde venho, tu que reconheces a água no meu olhar ao ouvires os meus passos quando piso o granito frio das escadas enquanto largo um suspiro de exaustão. Ignoro-te sem intensão. Também assistes a tudo, sei que compreendes o silêncio moribundo, o nó na garganta, o desejo intensivo de esquecer…e explodir.
Não penses que me esqueço de ti. Conheces como poucos a necessidade que tenho de estar comigo, de desabafar comigo…e contigo. Não me deixes só, mas deixa-me estar…assim. Desculpa.

Miguel Branco

12/04/12

Incondicionalmente

Escrever sabe a pouco. Alguém nos vê a descarregar cada resto de nós em cada tecla? Alguém sabe o que somos, em palavras plácidas ou efervescentes, em rugídos inúteis e desgastantes, em vírgulas incorrectas ou em pontos finais que parecem não resolver a frase? Não.


Eis o que somos para o papel, para os amigos que nos lêem, para o mundo que esperamos conquistar através de alguns trechos de nós, de algumas células menos moribundas, de lágrimas duvidosas. Nunca seremos o que escrevemos. Talvez sejamos o que gostávamos de ser.


Não te escrevo uma carta. Acalmo-te, seguro-te a tristeza com um pano roto e velho, e esqueço-me de mim. Não li num jornal, não ví nas notícias, ouvi-te dizer por palavras injustas, descuidadas. Sabiam a fusilli com atum de há cinco dias atrás. Vácuo. Nunca soube fingir, torno-me um nóctivago pseudo feliz em volta dos meus. Mas amanhã o tempo não muda. Vai nascer encoberto, ganha luz após o almoço e entristece com o chegar do vento. Não me leves tudo porque ainda precisas de mim. Não me acaricies com a satisfação implícita da tua vitória moral e incoerente. Eu não gostei, não falei, só escrevi. Fui insultar o Tejo por estar tão sujo e não se limpar. Fui descobrir o preço da vista para Lisboa só para não ter de voltar. Mas amanhã é outro dia e eu farei o mesmo por ti, ainda que me esqueça de mim.




Miguel Branco