29/02/12

As maçãs e os comboios a passar

Gostava de ter uma casa em que se ouvissem os comboios a passar. Em que imaginasse o frenesim absurdo das pessoas, os choques nas escadas, a aglutinação na entrada das carruagens. E eu a saborear a manhã, a acordar com o seu fresquinho, mais um café e um cigarro. Como se daquela casa eu visse tudo. Um planisfério interior da vida de outrém imaginada por mim, em breves recortes sonoros, em avisos com vozes cansativas onde se pede a compreensão dos passageiros. Mas o comboio terá um atrasado de cerca de 17 minutos, que mais parecem três horas.


As mais diversas linhas, as mais complexas ligações, ferrovias que me confudem o destino. Visto-me, oiço a rádio, perco-me nos livros do móvel antigo, leio os episódios nóctivagos que a calçada guardou para me confessar e nem sequer reparo.


Depois preciso de me sentar, de apreciar os ponteiros a girar lentamente, preciso da tua cabeça no meu peito, do teu amor em silêncio ao desviar das persianas. Da tua birra de sono, do teu jeito de refilar sem parar de rir, da tua mania de não me deixares sair da cama e da tua irritação quando te pergunto se queres uma maçã. É impossível uma maçã dar-te ainda mais fome. Mas por mim não há problema, tomamos o pequeno-almoço na esplanada.



Miguel Branco

12/02/12

Novo dia

Fazes declarações sombrias daquilo que sou. Vês sem olhar, preferes não sentir o vento a dar-te alguma luz à retina. Cospes palavras e cospes-me para um beco sujo, tornas-me vizinho dos ratos. As escadas de incêndio cheias de ferrugem, o odor ao desgaste, à ruína inscrita em pacotes de cartão húmido com pedaços bolorentos de um chilli barato e picante. Um sapato solto, sem sola, que não esconde as feridas dos pés e não protege do frio. Viraste costas, não ouves o meu desespero em conversa com a velha do 7º andar, que finge não me ver e me chama desgraçado pelo seu olhar. Como o prato do dia do italiano da esquina passado uma semana. Estás cega e surda, só ouves os teus próprios gritos inesgotáveis, em mentiras conscientes. Declamo poesia de rua, da minha autoria. Ninguém escuta, convidam-me a subir ao terraço e sinto-me a cair. A morte não é solução, apesar de ser uma tentação. Que noite terrível, tenebrosa, tudo parecia tão real.


Bom dia amor, dormiste bem?




Miguel Branco