09/11/11

Avião de papel

Plantei a semente e nem reparaste. Nem deste conta quando a ia regar todas as manhãs ao sabor de um café. Eu a pôr o pacote inteiro de açúcar, tu punhas metade. A chávena aquecia as tuas mãos quase roxas e o fumo saía envergonhado da tua boca. O teu casaco bege e o cachecol cinzento a cobrir-te o pescoço, o batom que espalhavas cuidadosamente pelos lábios e a natural falta de conversa. Tal como eu...não gostas de falar às oito horas da manhã. As poucas palavras saíam arrastadas e rabugentas, que é para isso que servem os encontros matinais, para nos queixarmos do ontem e rejeitarmos o hoje.


Já nem combinávamos, simplesmente aparecíamos. Cada dia diferente, uns brincos brilhantes, umas camisolas sensuais. A semente a ser regada inconscientemente. Cada dia nos sentávamos mais perto, o frio ainda era desculpa, mas na primavera não batia certo. Um dia foste embora e voltaste atrás, um dia deixámos o autocarro passar e os nossos olhares não se largavam. Nesse dia reparaste na semente, não a identificaste, não lhe viste a cor nem a forma, julgaste-a de papel. Fizeste um avião, assopraste e atiraste ao infinito.


A semente já estava enorme, as raízes bem fixas, era de papel consistente. O avião de papel regressou à palma da tua mão. Hoje já nem te recordas da semente, do básico avião de papel que se aprende no recreio da escola primária. Hoje construímos um pomar. Amanhã teremos uma quinta.



Miguel Branco

2 comentários:

  1. A coisa mais bonita que já se escreveu por aqui :)

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  2. Concordo com a Cátia. É bem capaz de ser o teu melhor texto, adoro :) Uma história contada em três parágrafos maravilhosamente bem escritos. A inspiração também calculo que tenha sido outra e só isso ajuda imenso.

    Beijinho
    Rita

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