27/10/10

Campos de Trigo

Pára. Já não consigo aguentar o teu peso. Pára de me empurrar para onde eu não sei ir, para onde o cheiro é diferente e silêncio não deixa ninguém falar. Que avassalador, o modo como me sinto observado no redor de ninguém. Nem um ancião aos tropeções na sua filosófica barba, nem um nómada que se perdeu a caminho de casa, nem um gnu que seja a fugir de um leopardo. Pior, nem um chinês.

E foste tu que me fizeste cair para estes campos de trigo intermináveis. Que castigo é este? Neste sítio, o silêncio é um ditador. Persegue-me até ao último trigo, a qual eu nunca cheguei. Não me deixa gritar, nem suspirar, ele ocupa todas as partículas invisíveis e ondas magnéticas com códigos estranhos, que me permitiriam exprimir-me, oralmente.

Puxa-me para fora daqui, eu não sei viver deste modo. Eu cresci com o silêncio, aquele que é bonito, que diz tanta coisa, sem nada dizer. Não quero, nem posso conviver com este. É inquisidor, multiplica-se em cada trigo, e daí propaga o seu eco milhões de vezes. É um ruído total e incompreensível.

Não vejo mais nada. Só amarelo meio torrado, que eu nunca odiei tanto. Nem sequer uma colina ou um vale com uma nascente?

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Já não estou lá. Alguém me trouxe de volta, e não foi o silêncio que eu sempre amei, nem o amarelo que eu desde pequeno idolatro. Foi alguém que me deu um local hollywoodesco, com que eu sempre sonhei. E me deixou estar, a observar, sem conseguir dormir, sem conseguir falar.

Se um dia assim o quiser, torno qualquer bela num monstro.

Miguel Branco

12/10/10

Carta aberta

Para ti e por ti, uma carta aberta. Sem dúvidas que se tornam aves, nem recuos que soem a despedidas emocionais por uma eterna janela de comboio. Não quero clichés que já cheiram mal, de tão velhos e gastos que estão. Precisamos de encher a nossa caixa secreta, e eis que cumprimos a tradição: uma carta no dia em que beijas a maioridade. Podia tornar esta carta numa coisa chata, em que apelava pelas tuas responsabilidades (como se fosse preciso), em que incorporava uma personagem de cinquenta anos e falava dos voos e das quedas com que a vida nos congratula.

Mas isso não seria eu. Eu gosto de te florear e de te mimar com palavras perfumadas. As vezes sinto-me ridículo, como se te tivesse conhecido ontem e tudo isto fosse um flirt a tomar proporções gigantescas e assustadoras. E mais, como se a nossa história fosse como a comum das mortais, em que dois olhares se cruzem, se aproximam e quase se tocam, para depois se afastarem e voltarem mais tarde a unir-se de facto. Ou pior, como se nos tivéssemos beijado pela primeira vez numa sala de cinema (não é que eu não tenha tentado). Acho que ninguém teve um primeiro beijo num sítio tão cómico como nós (desculpem caros seguidores de comtexto depois conto-vos, um dia mais tarde).

Com dezoito ou com quarenta e cinco, serás sempre tu. E eu serei sempre eu, e estarei sempre no mesmo local, se houver forças para isso: ao teu lado. Parabéns pequenina.

Teu, hoje e sempre,

Miguel Branco

05/10/10

Pesadelo

Calma. Ele está a bater muito depressa.

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Onde vais tu deambulando por esses planaltos já visitados e por essas pedreiras de cores asfixiantes? O que procuras nessa natureza que esmaga pensamentos e corrói criatividade? Porque queres fazer uma tempestade com as próprias mãos e erguer um tornado que absorva os dois hemisférios?

E não queres ser culpado. Não queres que ninguém fique para te apontar o dedo. Sobram telhas em trezentos pedaços, sinais de trânsito amachucados, carros sem direcção.

Querias o ostracismo global e o que seria de ti? Serias o único Adão, no teu personalizado jardim de éden, onde as cinzas reinavam e o cheiro dos cadáveres te ia queimando o desejo de viver. Eras já parte da vegetação, o teu sangue ia arrefecendo e eras nativo daquele local. Que é feito da tua linguagem e forma de comunicação humana?

Perdeste os poderes. E os olhos abriram lentamente.

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Calma. Já expeli a minha angústia. Ele voltou ao ritmo normal.

Miguel Branco