12/04/12

Incondicionalmente

Escrever sabe a pouco. Alguém nos vê a descarregar cada resto de nós em cada tecla? Alguém sabe o que somos, em palavras plácidas ou efervescentes, em rugídos inúteis e desgastantes, em vírgulas incorrectas ou em pontos finais que parecem não resolver a frase? Não.


Eis o que somos para o papel, para os amigos que nos lêem, para o mundo que esperamos conquistar através de alguns trechos de nós, de algumas células menos moribundas, de lágrimas duvidosas. Nunca seremos o que escrevemos. Talvez sejamos o que gostávamos de ser.


Não te escrevo uma carta. Acalmo-te, seguro-te a tristeza com um pano roto e velho, e esqueço-me de mim. Não li num jornal, não ví nas notícias, ouvi-te dizer por palavras injustas, descuidadas. Sabiam a fusilli com atum de há cinco dias atrás. Vácuo. Nunca soube fingir, torno-me um nóctivago pseudo feliz em volta dos meus. Mas amanhã o tempo não muda. Vai nascer encoberto, ganha luz após o almoço e entristece com o chegar do vento. Não me leves tudo porque ainda precisas de mim. Não me acaricies com a satisfação implícita da tua vitória moral e incoerente. Eu não gostei, não falei, só escrevi. Fui insultar o Tejo por estar tão sujo e não se limpar. Fui descobrir o preço da vista para Lisboa só para não ter de voltar. Mas amanhã é outro dia e eu farei o mesmo por ti, ainda que me esqueça de mim.




Miguel Branco

2 comentários:

  1. " Mas amanhã é outro dia e eu farei o mesmo por ti, ainda que me esqueça de mim." invariavelmente assim, porque vai sempre um pouco de nós em tudo o que fazemos. Até o que se possa perder.

    Dos meus favoritos por ser tão bom.

    kiss, amigo (:

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  2. "Eis o que somos para o papel, (...) para o mundo que esperamos conquistar através de alguns trechos de nós[...]"

    Verdade em palavra, é isto o que nos difere do resto do mundo. Verdade, sempre.

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