22/03/12

Espelho Partido

Nem sempre me lembro onde estive. Com quem troquei desassossegos escondidos, com quem partilhei o silêncio sem pagar, com quem dancei poesia gasta e banal. Não me recordo da roupa que usei, nem de olhar as horas, nem de ser preguiçoso e idealista, como sempre sou. Encho-me de mim, dos devaneios de miúdo, das expressões dispensáveis, do cheiro a lágrimas nunca confessadas, das conversas necessárias que prefiro não ter para não me ouvir toda a manhã seguinte.



Não me lembro porquê. Não me lembro de esperar por mim, nem de me repetir constantemente, nem de pedir um café e deixá-lo arrefecer. Não me recordo de querer ser mais e ver os dias a passar discretamente. Mal sei o que me contou o meu espelho. Talvez precise de não me lembrar. Talvez não queira. Talvez não consiga. Talvez me lembre quando não me restar mais nada.







Miguel Branco

29/02/12

As maçãs e os comboios a passar

Gostava de ter uma casa em que se ouvissem os comboios a passar. Em que imaginasse o frenesim absurdo das pessoas, os choques nas escadas, a aglutinação na entrada das carruagens. E eu a saborear a manhã, a acordar com o seu fresquinho, mais um café e um cigarro. Como se daquela casa eu visse tudo. Um planisfério interior da vida de outrém imaginada por mim, em breves recortes sonoros, em avisos com vozes cansativas onde se pede a compreensão dos passageiros. Mas o comboio terá um atrasado de cerca de 17 minutos, que mais parecem três horas.


As mais diversas linhas, as mais complexas ligações, ferrovias que me confudem o destino. Visto-me, oiço a rádio, perco-me nos livros do móvel antigo, leio os episódios nóctivagos que a calçada guardou para me confessar e nem sequer reparo.


Depois preciso de me sentar, de apreciar os ponteiros a girar lentamente, preciso da tua cabeça no meu peito, do teu amor em silêncio ao desviar das persianas. Da tua birra de sono, do teu jeito de refilar sem parar de rir, da tua mania de não me deixares sair da cama e da tua irritação quando te pergunto se queres uma maçã. É impossível uma maçã dar-te ainda mais fome. Mas por mim não há problema, tomamos o pequeno-almoço na esplanada.



Miguel Branco

12/02/12

Novo dia

Fazes declarações sombrias daquilo que sou. Vês sem olhar, preferes não sentir o vento a dar-te alguma luz à retina. Cospes palavras e cospes-me para um beco sujo, tornas-me vizinho dos ratos. As escadas de incêndio cheias de ferrugem, o odor ao desgaste, à ruína inscrita em pacotes de cartão húmido com pedaços bolorentos de um chilli barato e picante. Um sapato solto, sem sola, que não esconde as feridas dos pés e não protege do frio. Viraste costas, não ouves o meu desespero em conversa com a velha do 7º andar, que finge não me ver e me chama desgraçado pelo seu olhar. Como o prato do dia do italiano da esquina passado uma semana. Estás cega e surda, só ouves os teus próprios gritos inesgotáveis, em mentiras conscientes. Declamo poesia de rua, da minha autoria. Ninguém escuta, convidam-me a subir ao terraço e sinto-me a cair. A morte não é solução, apesar de ser uma tentação. Que noite terrível, tenebrosa, tudo parecia tão real.


Bom dia amor, dormiste bem?




Miguel Branco

14/01/12

Eu não digo

Sempre falámos a mesma língua. Sempre te riste quando ninguém achou piada. Não por compaixão, mas porque achaste graça. Sempre disseste que sou igual à minha mãe. E eu a negar. Sempre quiseste pensar que não ia durar. Para te defenderes. Sempre te auto-proclamaste o homem da relação. Sempre te escondeste para chorar. Sempre me levaste à estação. Sempre propuseste que fizéssemos uma paragem no caminho. Sempre me apontaste o dedo. Sempre pensaste, sem sequer a ti própria o admitires, que eu podia ser melhor. Sempre gostaste de ir aos sítios onde nunca tinhas ido. Sempre adoraste o meu gato. Mesmo chamando-lhe nomes. Sempre deixaste os teus óculos escuros na minha mesa-de-cabeceira. E o líquidos das lentes. E, as vezes, os ganchos para o cabelo. Sempre foste deixando parte de ti comigo. Sempre fizeste questão. Sempre recusaste dizer sempre. Sempre disfarçaste. Não se passa nada. Sempre arrotaste depois das minhas divagações culinárias. E sempre quiseste repetir. Sempre odiaste que te desse a mão para atravessares a estrada. Sempre me acusaste de ouvir barulho. Em vez de ouvir música. Sempre adoraste os meus ombros. Sempre disseste que a culpa era minha. Sempre odiaste quando falo à moda da margem sul. Sempre me provocaste a escolher a roupa do teu armário. Sempre quiseste o meu colo. Sempre fomos nós. E nunca te importaste. Sempre consumimos as paisagens como se fossem exclusivas. Sempre recusámos fazer planos a longo prazo. Sempre gozámos com as noites em que éramos para dormir juntos, e não sucedeu porque combinámos previamente. Sempre utilizaste palavras demasiado fortes quando discutimos. Sempre fingiste que te enganavas quando surgia a pergunta: “há quanto tempo namoram?”. Sempre esperaste não me amar tanto. Mas não conseguiste. Deixa-me dizer sempre, mesmo que hoje não queiras ouvir. Eu juro que não digo: para sempre.




Miguel Branco

02/01/12

O espanhol de Pamplona

Não sou só eu. E eu sempre pensei que sim. Pediu licença e sentou-se desajeitadamente, enquanto eu devorava a minha sobremesa literária depois do almoço. De súbito, vejo-o a gesticular e a expelir um castelhano acessível em direcção a ninguém, que por breves instantes imaginei que fosse para mim. Não era.


A barba cerrada e densa, o cabelo extenso e gasto e um olhar profundo e esverdeado, como o quintal da nossa infância. Enfim falou para mim. Com a simpatia e simplicidade que já tinha demonstrado, o espanhol pediu-me para enrolar um cigarro. Perguntei-lhe se sabia enrolar e a resposta foi afirmativa, até porque os espanhóis têm esse hábito, referiu-me ele no nosso curto diálogo. Não sei ao certo se fui eu, se me resguardei demais dentro do meu livro, se ouvia as suas conversas ou se lia o meu livro e o traduzia automaticamente para castelhano dentro da cabeça. Não sei, mas tenho a minha convicção: ele é que não tinha tempo para falar comigo.


E foi aí que percebi que não sou o único. Há alguém no mundo, que com os seus 30/40 anos ainda tem um amigo imaginário. Eu tenho amigos (não imaginários) que me gozam quando eu admito a existência do meu amigo, e posso em certas circunstâncias aproveitar para entrar em certas brincadeiras, mas este assunto não tem uma piada especial. O meu amigo imaginário não tem de ser perfeito, não tem de ter um nome pacóvio, não tem sequer de ter uma forma. O meu amigo imaginário é uma cadeira vazia, é uma letra maiúscula num outdoor, é uma nuvem matrafona a vender peixe no mercado. Ele aparece quando precisamos de discutir política, de chamar nomes às mulheres e de questionar o futuro de uma nação enterrada há 35 anos.


Não espreitei inúmeras vezes a conversa do espanhol com o seu amigo, ouvi umas interrogações sobre a sociedade e o estado social, umas filosofias à borla que sabem tão bem quando estamos cheios. Soube que era de Pamplona, mas não quis alongar-me que ainda íamos parar às touradas. De Pamplona...o espanhol. O amigo é de onde tem que estar. Como o meu.


Os amigos imaginários não morrem aos 8 anos, crescem como nós e crescem connosco. Perdem o nome e tornam-se (quase) a consciência.




Miguel Branco

18/11/11

História Banal

No início não acreditei. Aos meus olhos parecia-me uma história banal, um sorriso tímido e uma hortênsia meio caída. Comecei a ouvir os passos de um cavalo, altivos, de queixo levantado, a querer ganhar velocidade. Que confusão, já vi esta história. De súbito ganhava as proporções de um western, as pistolas a sair do cinto de pele, o barulho das balas a encaixar no revólver. Mas engana-se quem pensar que houve disparos. Soltaram-se bandeiras brancas de rendição, de vontade, de desejo efervescente. Ele respeitava e ela não queria que ele o fizesse, mas não deixava que fosse de outra forma. (Aqui entre nós...as mulheres perdem-se).


A distância: meio milímetro. A vontade: toda a noite. E lá se esconderam no quarto, com vinho no sangue e desejo nos lábios, que nunca se chegaram a tocar.


Ninguém sai fora. Ninguém desiste. Mas a distância não muda e o cansaço acaba por chegar. A garganta secou e o silêncio não forma palavras. Até que, de olhos nos olhos, a mentira foi proferida. Numa história banal o mais fácil é o melhor. Decide-se aquilo que evita granizos pela madrugada e lábios gretados pela manhã. No final não acreditei. Mais uma história banal se assim é teu desejo.



Miguel Branco

09/11/11

Avião de papel

Plantei a semente e nem reparaste. Nem deste conta quando a ia regar todas as manhãs ao sabor de um café. Eu a pôr o pacote inteiro de açúcar, tu punhas metade. A chávena aquecia as tuas mãos quase roxas e o fumo saía envergonhado da tua boca. O teu casaco bege e o cachecol cinzento a cobrir-te o pescoço, o batom que espalhavas cuidadosamente pelos lábios e a natural falta de conversa. Tal como eu...não gostas de falar às oito horas da manhã. As poucas palavras saíam arrastadas e rabugentas, que é para isso que servem os encontros matinais, para nos queixarmos do ontem e rejeitarmos o hoje.


Já nem combinávamos, simplesmente aparecíamos. Cada dia diferente, uns brincos brilhantes, umas camisolas sensuais. A semente a ser regada inconscientemente. Cada dia nos sentávamos mais perto, o frio ainda era desculpa, mas na primavera não batia certo. Um dia foste embora e voltaste atrás, um dia deixámos o autocarro passar e os nossos olhares não se largavam. Nesse dia reparaste na semente, não a identificaste, não lhe viste a cor nem a forma, julgaste-a de papel. Fizeste um avião, assopraste e atiraste ao infinito.


A semente já estava enorme, as raízes bem fixas, era de papel consistente. O avião de papel regressou à palma da tua mão. Hoje já nem te recordas da semente, do básico avião de papel que se aprende no recreio da escola primária. Hoje construímos um pomar. Amanhã teremos uma quinta.



Miguel Branco