Já não me lembrava como era. Como
as vestes enganavam o vento e assentavam nos olhos dos pobres coitados. Ainda
ontem era eu. Que me enclausurava em camisas velhas do meu pai só para não
mostrar quem sou, como se isso fosse possível. De patilhas atrevidas, bigode
mal formado, sempre a recolher restos de cerveja, invejoso. O olhar era curto,
fugaz, preso ao solo, arrastado em respeito. Nunca outrora o
levantar-cedo-e-cego-erguer tinha tido tanto nexo, tanta lógica invertida
tropeçando o grito que jamais esqueci. Sim, porque isso de complicar contas e
inventar tabuadas com letras romanas como se fosse o bê-á-bá da bicharada não
está ao alcance de um engravatado no metro. Antes pelo contrário, mais se
aplica a um selvagem com um remendo do Rik & Rok a cobrir o joelho, sem
emprego e com o futuro por um canudo. Ainda ontem éramos nós. A proferir
palavras de complexa pronúncia, sem saber bem o seu significado, um latim que
se amarrou ao coração, sem aviso prévio, com as unhas espetadas a um f tremendo.
Ainda ontem deixei de ser. Ainda ontem me quis enganar e pensar que me ia
sentar a fumar enquanto vos via crescer. Ainda ontem desci as mesmas escadas de
sempre com os olhos húmidos e um sorriso de orgulho. Ainda ontem disse que não
ia. Ainda hoje voltei e quem pagou foram vocês, aqueles que um dia ousei
indicar um caminho duro, mas intenso. Ainda hoje me lembrei como era. Devo-vos
tanto como vocês a mim. Somos assim.
Miguel Branco