14/09/12

Ainda ontem


Já não me lembrava como era. Como as vestes enganavam o vento e assentavam nos olhos dos pobres coitados. Ainda ontem era eu. Que me enclausurava em camisas velhas do meu pai só para não mostrar quem sou, como se isso fosse possível. De patilhas atrevidas, bigode mal formado, sempre a recolher restos de cerveja, invejoso. O olhar era curto, fugaz, preso ao solo, arrastado em respeito. Nunca outrora o levantar-cedo-e-cego-erguer tinha tido tanto nexo, tanta lógica invertida tropeçando o grito que jamais esqueci. Sim, porque isso de complicar contas e inventar tabuadas com letras romanas como se fosse o bê-á-bá da bicharada não está ao alcance de um engravatado no metro. Antes pelo contrário, mais se aplica a um selvagem com um remendo do Rik & Rok a cobrir o joelho, sem emprego e com o futuro por um canudo. Ainda ontem éramos nós. A proferir palavras de complexa pronúncia, sem saber bem o seu significado, um latim que se amarrou ao coração, sem aviso prévio, com as unhas espetadas a um f tremendo. Ainda ontem deixei de ser. Ainda ontem me quis enganar e pensar que me ia sentar a fumar enquanto vos via crescer. Ainda ontem desci as mesmas escadas de sempre com os olhos húmidos e um sorriso de orgulho. Ainda ontem disse que não ia. Ainda hoje voltei e quem pagou foram vocês, aqueles que um dia ousei indicar um caminho duro, mas intenso. Ainda hoje me lembrei como era. Devo-vos tanto como vocês a mim. Somos assim.

Miguel Branco

02/09/12

Dia sozinho


Comecei pelo fim e adormeci. Deitei-me, mandei a mensagem e fui tomar banho sem ouvir a porta do quintal mais o vento. Saí de casa e acordei, os lençois estavam frios e o despertador já me irrita. Fiz tudo ao contrário. Estive no início do século XX e ninguém acredita...como é só meu. Fui trabalhar sem que nenhuma sombra sentisse o aroma da minha ausência, reparaste? Tudo a achar que me sentei e falei, se alguma vez soubessem de que madeira sou feito. Estive sozinho o dia inteiro, cheio de ninguém, farto de mim e vazio de vocês. Viro a cara à luta e continuo normal. Lunático que sou, longe de mim. E acabo aqui, de volta ao que fui, que há meses larguei. Ostracizo-me diante de ti, vizinha e casa em tempos de outrém. Um dia sozinho, como me soube tão bem.

Miguel Branco