14/01/12

Eu não digo

Sempre falámos a mesma língua. Sempre te riste quando ninguém achou piada. Não por compaixão, mas porque achaste graça. Sempre disseste que sou igual à minha mãe. E eu a negar. Sempre quiseste pensar que não ia durar. Para te defenderes. Sempre te auto-proclamaste o homem da relação. Sempre te escondeste para chorar. Sempre me levaste à estação. Sempre propuseste que fizéssemos uma paragem no caminho. Sempre me apontaste o dedo. Sempre pensaste, sem sequer a ti própria o admitires, que eu podia ser melhor. Sempre gostaste de ir aos sítios onde nunca tinhas ido. Sempre adoraste o meu gato. Mesmo chamando-lhe nomes. Sempre deixaste os teus óculos escuros na minha mesa-de-cabeceira. E o líquidos das lentes. E, as vezes, os ganchos para o cabelo. Sempre foste deixando parte de ti comigo. Sempre fizeste questão. Sempre recusaste dizer sempre. Sempre disfarçaste. Não se passa nada. Sempre arrotaste depois das minhas divagações culinárias. E sempre quiseste repetir. Sempre odiaste que te desse a mão para atravessares a estrada. Sempre me acusaste de ouvir barulho. Em vez de ouvir música. Sempre adoraste os meus ombros. Sempre disseste que a culpa era minha. Sempre odiaste quando falo à moda da margem sul. Sempre me provocaste a escolher a roupa do teu armário. Sempre quiseste o meu colo. Sempre fomos nós. E nunca te importaste. Sempre consumimos as paisagens como se fossem exclusivas. Sempre recusámos fazer planos a longo prazo. Sempre gozámos com as noites em que éramos para dormir juntos, e não sucedeu porque combinámos previamente. Sempre utilizaste palavras demasiado fortes quando discutimos. Sempre fingiste que te enganavas quando surgia a pergunta: “há quanto tempo namoram?”. Sempre esperaste não me amar tanto. Mas não conseguiste. Deixa-me dizer sempre, mesmo que hoje não queiras ouvir. Eu juro que não digo: para sempre.




Miguel Branco

02/01/12

O espanhol de Pamplona

Não sou só eu. E eu sempre pensei que sim. Pediu licença e sentou-se desajeitadamente, enquanto eu devorava a minha sobremesa literária depois do almoço. De súbito, vejo-o a gesticular e a expelir um castelhano acessível em direcção a ninguém, que por breves instantes imaginei que fosse para mim. Não era.


A barba cerrada e densa, o cabelo extenso e gasto e um olhar profundo e esverdeado, como o quintal da nossa infância. Enfim falou para mim. Com a simpatia e simplicidade que já tinha demonstrado, o espanhol pediu-me para enrolar um cigarro. Perguntei-lhe se sabia enrolar e a resposta foi afirmativa, até porque os espanhóis têm esse hábito, referiu-me ele no nosso curto diálogo. Não sei ao certo se fui eu, se me resguardei demais dentro do meu livro, se ouvia as suas conversas ou se lia o meu livro e o traduzia automaticamente para castelhano dentro da cabeça. Não sei, mas tenho a minha convicção: ele é que não tinha tempo para falar comigo.


E foi aí que percebi que não sou o único. Há alguém no mundo, que com os seus 30/40 anos ainda tem um amigo imaginário. Eu tenho amigos (não imaginários) que me gozam quando eu admito a existência do meu amigo, e posso em certas circunstâncias aproveitar para entrar em certas brincadeiras, mas este assunto não tem uma piada especial. O meu amigo imaginário não tem de ser perfeito, não tem de ter um nome pacóvio, não tem sequer de ter uma forma. O meu amigo imaginário é uma cadeira vazia, é uma letra maiúscula num outdoor, é uma nuvem matrafona a vender peixe no mercado. Ele aparece quando precisamos de discutir política, de chamar nomes às mulheres e de questionar o futuro de uma nação enterrada há 35 anos.


Não espreitei inúmeras vezes a conversa do espanhol com o seu amigo, ouvi umas interrogações sobre a sociedade e o estado social, umas filosofias à borla que sabem tão bem quando estamos cheios. Soube que era de Pamplona, mas não quis alongar-me que ainda íamos parar às touradas. De Pamplona...o espanhol. O amigo é de onde tem que estar. Como o meu.


Os amigos imaginários não morrem aos 8 anos, crescem como nós e crescem connosco. Perdem o nome e tornam-se (quase) a consciência.




Miguel Branco