17/10/11

Vozes

No fim da tarde sou eu. A varanda cheia de roupa, o sol a despedir-se, o cigarro e eu. Conversas de enterro, o gato não pára de bater no vidro e eu nem oiço. As rolas aninham-se no pinheiro, escutam-me e comentam. Já nem penso nos gritos da puta da vizinha, ela que os faça, alguém que os consuma.


Tenho monólogos múltiplos, vozes em eco sobrepostas em mim. O mármore da mesa congela-me o cérebro e, subitamente, os meus pensamentos estagnam e coloco o cigarro no cinzeiro. Sobra uma dor de cabeça massiva que me encolhe os poucos devaneios que me libertam, mas que também me acorrentam. Não consigo fugir de mim, não sei falar de outra forma.


O sol já se escondeu, as luzes dos aviões confundem-se com estrelas, a roupa tem que se apanhar, não vá a humidade fazer das suas. O gato já dorme no sofá, as rolas foram-se alimentar, a vizinha ficou roca. E as vozes continuam a dialogar dentro de mim, enquanto bebem um chá preto e comem uma torrada com doce de amora. No início da noite sou eu.




Miguel Branco

11/10/11

Não me larga

Conto as pedras de calçada que faltam para chegar. Umas já são passeio. Outras nunca foram. O toque, o aviso e a fechadura, que cansaço. O encosto da cara quase parece um afecto, mas não me engano. Seguem-se as perguntas, os pedidos e os decibéis a levantarem-se do chão. As mesmas respirações pautadas pelo mesmo conflito. E mais nada.


A desilusão, essa não me larga. Enfio as luvas para a agarrar, o cheiro a plástico a enjoar, respiro fundo e deito a mão. Só água. Nada sólido, nada passível de queimar e tornar pó. Nem um simples botão de reiniciar para acreditar de novo. Para perceber que foi falha do sistema, que o coração ainda me têm em fotos de miúdo. Mas hoje ponho a mala ao ombro, viro costas e deixo de ouvir. Hoje percebo que não há caminho de regresso e que o olhar perdeu a cor. Ali, já não sou o que fui, sou um comboio estonteado sem paragens nem atrasos.


Faço de sentinela a noite inteira e nem a vejo pousar. Vou deixá-la estar. Não a consigo agarrar.






Miguel Branco