26/03/11

Eles

Ela dizia que sim. Ele dizia que não. Ele pensava que sim. Ela pensava que não. E eu a ver. Nada se ouvia. Sem frequência radiofónica, sem altifalantes secretos, sem um pedaço de futuro para hoje se projectar. O amor, que nenhum dos dois ousaria admitir, em recuos estratégicos, em desvios de olhar, em abraços eloquentes.

Amarram-se a uma árvore com cordas de desejos e algemas de beijos, a inquisição à porta e a emigração à vista. Alguém se ergueu, com medo de se tornar raiz de árvore tão bela, de sustentar os troncos, as folhas e os frutos e tudo (na hora do tornado), de beber da água mais suja e mais saborosa e mais...

Façam-se juras de fugacidade, cuspidas por desilusões de eternidade, e um olhar recatado, distraído, húmido, mais perto de mim, de onde os contemplo. É feio, eu sei. Espreitar a vida de outrém que desespera por um sorriso, nem que seja amargo, nem que quase não se note, nem que ela o desminta. Perdido no dia, na noite, no amanhecer da sua revolta interina, no anoitecer da sua desejada placidez.

Retiro-me, aos poucos, para não ver como termina. O meu olhar está exausto. De tanta emoção, de tanta desordem amorosa, de tantos laços sumidos em expirações trémulas. Que história ofegante. Não resisti. Voltei a atrás e olhei. Não vi mais que os seus corpos desenhados na relva. Eu nado. Tu nadas. Ele nada. Nós nadamos. Vós nadais. Eles nada.

Miguel Branco

21/03/11

Casa

O sol de frente para a lua. De um lado o dia, do outro a noite. E eu no meio...de nada. Reflectem-se mutuamente no leito do rio que eu não alcanço, nem avisto. Tão perto de mim. Estou tão longe de vós, aqui onde vos escrevo esta carta. Na dificuldade de me despedir...para ficar. Hoje que fui, hoje que sou, hoje que vim para longe de mim. Um adeus sem cor, sem fuga. Silencioso.

As paredes estão iguais, os quadros da Bahia e o touro com olhos humanos. O mesmo mármore gelado e a vossa enorme biblioteca, no topo. O cheiro mudou. Capto desgosto nas partículas que o sol ilumina e a lua esconde. A porta está mais velha, mais difícil de abrir e de fechar. Declaro-me culpado.

Que saudades do vosso sorriso, que sempre foi a minha jangada quando nadava entre algas mortíferas e maremotos emocionais. Afogado na minha cegueira deixei-vos ver, matei metade de vós.

Um dia escrevi-te, lua, com medo que não voltes a ser cheia. Sem perdão. Sem regresso ao teu abraço gigante, onde me sentia na proa do navio, desabafando com o vento. Tenho a cara enterrada na areia, bem fundo, e não há uma gota de água. Nem um búzio a fazer de jukebox ou um caranguejo a fugir da espuma. Evaporou. Tudo. Hoje despeço-me de vós e da casa que também foi minha. Desculpem.

Miguel Branco

05/03/11

Não se paga nada

Já estava na hora. A plataforma bem composta. Temperatura razoável. Humidade em decrescendo da noite. Vento de Nordeste. Metro e meio na Costa e em Peniche. Oito horas e dezanove minutos. Menos uma nos Açores. E o sol descansava lá em cima, no tecto da estação do Pragal. Também merece, que isto de iluminar múltiplos lugares do mundo constantemente também cansa. O fumo ia divagando, a música em cada ouvido, jornais gratuitos em abundância. A pressa de partir e a pressa de chegar, entre posicionamentos perigosos e empurrões cansativos. Quem adivinha onde vai parar a última porta? Eu acerto sempre, só aquela senhora com cinquenta sobretudos e setenta cachecóis é que me dá luta. Uma vez, outra vez outro. 45-42, ganha ela. Mas o campeonato ainda não terminou.

E aí vem ele, o comboio suburbano Fertagus oriundo de Coina e com destino a Roma-Areeiro vai entrar na linha número quatro. Não é bem assim, se fosse tinha de colocar aspas. E teria de fazer aquela voz formal que tanto me irrita. É agora é agora...já está. Que saborosos cinco segundos. Em que o comboio passa a alta velocidade, eu fecho os olhos, espero que o vento me lave a cara e ganho um sorriso por mais uns minutos. E vejam bem, é grátis, não se paga nada. Pelo sorriso. Pela brisa? Aqueles vinte e cinco cêntimos a mais que sobressaem dos vinte e cinco euros não são do IVA.

Os cabelos voam, os cigarros apagam-se e a portas abrem-se. Pode seguir viagem que o sol já está à minha espera na ponta para desejar um bom dia.

Cinco segundos, vinte e cinco cêntimos, mas pagos com gosto. Até logo.

PS: Nem se atrevam a dizer que a brisa do metro é melhor.

Miguel Branco