29/01/11

Terraço

Eu não queria ser mosca, juro. Até porque as moscas fazem barulho, apanham cancro da pele em cima de merda e não conseguem parar muito tempo num local. Nunca resultaria num bom observador. Adorava ficar sentado num terraço de Nova Iorque com uns binóculos com infinito zoom e deixar-me ficar.

As pessoas estreitam relações. Cospem em pratos limpos que mais tarde se esquecem de lavar. Dançam com inimigos e na ressaca do tango lêem um post-it – “Isto nunca aconteceu”. Chamam um táxi e dividem o banco, sem champanhe nem gorjeta. Pobre taxista ainda tem de comprar um ambientador para o banco de trás. Fumam um cigarro enquanto enumeram as luzes cintilantes da sua cidade. Fumam um maço e lá se perdem na contagem. Jantam gambas fritas com molho de alho e gastam trezentos guardanapos. Odeiam e têm gosto em odiar. Desprezam, mas não é essa a sua vontade. Acabam por admitir que, num passeio para (re)colocar as ideias em ordem, até a companhia de quem sempre os rebaixou é melhor do que o conforto da pessoa que mais desejam. Bebem cafés de olhares e suspiros, com muito açúcar e com a chávena a escaldar, se não for muito incómodo Dona Adelaide. Sobem as dunas do deserto num jipe descapotável e gritam com a impressão que fazem na barriga, as descidas abruptas. E um sorriso nessa altura. Uma provocação e uma chapada a seguir. E depois? Outra descida, outra impressão na barriga.

Daqui vejo-vos a todos. E vocês andam bonitos, a olhar para todo o lado para ver se alguém deixa cair os livros e apontamentos, para darem uma ajuda a apanhar. Quem não gosta de pequenos momentos caricatos? Quem não admite.

Estou muito melhor sentado nesta preguiceira do que uma mosca a incomodar. Eu não incomodo, o meu zoom não acaba nunca. As pessoas estreitam relações, cortam outras e alimentam mais umas, inconscientemente. As pessoas levantam dinheiro e deixam-se levar. Eu aumento o zoom, peço um whisky e deixo-me ficar.

Miguel Branco

23/01/11

Orgulho

Já não sinto o cheiro do teu cabelo. Em cada lance de escadas, em cada curva mais apertada. De nada, não de gente. O nada também ocupa espaço. Também sabe de onde vem, para onde vais, que sentido tem esse olhar. E tu não o ouves. Não o vês. Só a ti te vês, em lagos gelados do Alasca, onde te sentes em casa. No gelo. No frio que hoje queima os lábios e amanhã queima as artérias. Não gostas do nosso frio, tão cheio de maresia, tão português (mesmo quando surge do local mais remoto do planeta). É nosso porque se aconchega aqui por uns tempos. Quem serás tu para o menosprezares? Chega. Pára de aumentar as importações de sentimentos. Exporta. Confronta o nada quando ele te acende os olhos com um fósforo inflamável. Resiste. Convida o silêncio, ele também gosta de ser escutado. Não sejas normal. Não queiras ser mais um. Não tenhas medo, ser sensível não é defeito. É orgulho. Olha em frente.

Miguel Branco

(PS: votem bem minha gente)